sábado, 4 de outubro de 2014

Festa de São Francisco de Assis



Estimados(as) Irmãos e Irmãs da Família Franciscana do Brasil
Paz e todo Bem!


Ao Celebrarmos a Festa do nosso Pai Seráfico, somos convocados e convocadas a mergulhar no “Evangelho da Alegria”, que a exemplo de São Francisco de Assis, encontramos a luz que ilumina a nossa caminhada; nos cerca de graças, e nos fortalece no esvaziamento interior, e nos move a sermos menores e, assim na ternura, bendizer o Pai por tudo aquilo que quis revelar aos pequenos. Hoje, proposto com vigor e insistência pelo nosso iluminado Papa Francisco.
São Francisco inicia o cântico das criaturas nestas palavras:

Altíssimo Onipotente e bom Senhor,
Louvado sejas, meu Senhor, com todas as criaturas”.

Nesta evocação criatural, São Francisco de Assis nos move a viver o amor por toda a criação. O Seráfico Pai testemunha o respeito por tudo aquilo que Deus criou. Revela no seu amor existencial a compaixão que a pessoa humana é chamada a cuidar do ser humano no espaço sagrado.

Peçamos a São Francisco de Assis, alcançai-nos de Deus o dom do esvaziamento do nosso ser, para que possamos experimentar a verdadeira pobreza.

Rezemos com São Francisco:
Altíssimo e Glorioso Deus.
Iluminai as trevas do meu coração.
Dá-me uma fé reta.
Uma esperança certa.
Uma caridade perfeita.
Dá-me bom censo e inteligência, ó Senhor
A fim de que cumpra, Senhor tua Santa Vontade.

Queridos Irmãos e Irmãs! O Conselho Diretor da Família Franciscana do Brasil, por meio desta mensagem, deseja entrar em cada fraternidade, e desejar a todos e a todas uma Feliz e Abençoada Festa de São Francisco.
O Senhor nos abençoe, Nossa Senhora nos proteja e São Francisco nos ajude a viver a ternura e o vigor como fiéis seguidores e seguidoras do Senhor.

Abraço de Paz e todo Bem!

Irmã Rosália Sehnem
Pelo Conselho Diretor da FFB

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Francisco, modelo referencial do humano


Na efervescência da crise da modernidade ou pós-modernidade em que vivemos, na mudança de época e de paradigmas, estonteados como a pluralidade cultural e religiosa, na dependência das novas mídias, na fragmentação das relações, na aceleração dos processos, nas múltiplas necessidades instauradas pelo mercado, livres no pensamento, mas presos num consumo escravizante, aqui estamos nós no novo patamar civilizatório. Na esperança de que a política volte a ser o arranjo existencial para o bem comum e não tráfico de influências; de que escolas moldem um humano forte e não subjetividades fracas; de que as religiões desçam da sedução hierárquica das fortes estruturas e voltem a revelar a mais pura mística e o inspirador sopro do Espírito, aqui estamos nós gritando que precisamos ser olhados com prioridade em nosso ser pessoa, em nossa mais nítida identidade.
Na diversidade de pensamentos, no conhecimento interdisciplinar, no pensar a existência de um modo holocentrado, de ações articuladas na rapidez da comunicação, da globalização que traz o mundo para os quintais e conviver com os problemas que antes estavam distantes, e que, hoje, acotovelam-se na calçada de nossa casa; deste jeito cansado de dormir anônimo e acordar célebre sonhando o bem-estar que vem  do econômico, do social, do político e cultural, ou talvez da mega-sena que pagará nossas dívidas com os megaprocessos, aqui estamos nós  sobreviventes do novo século.
Não, não somos trágicos e nem cultores do pessimismo, mas amamos os desafios de bons sonhos e excelente realidade. Questionamos para crescer e sabemos que perguntas existenciais esquentam a busca. Temos um cabedal de perguntas técnicas que, cada dia, vivem em nós e mostram como isto funciona; porém, precisamos de perguntas comprometidas com o modo de ser humano para, se não tivermos respostas, que ao menos apontem caminhos de todos os porquês. Sabemos como fazer, nem sempre como Ser. Na busca de sendas precisas, com o mapa orientador na mão e na mente, queremos sair da imensidão da floresta e encontrar clareiras que apontem: é por aqui! Nas luminosas clareiras, onde paramos para tomar fôlego, como réstias indicadoras de luz, aparecem a mística, a alteridade, o feminino, o diálogo Inter-religioso e a questão ambiental, a grande síntese dos paradigmas do século XXI.  Seguir as indicações destes sentidos nos ensinará a ler, analisar, pensar, perceber e se comprometer com o que se passa ao nosso redor e no mundo. É um conjunto de setas que nos apontam a direção neste momento histórico atual. Não podemos caminhar sozinhos, precisamos olhar os modelos vivos, os modelos referenciais de ontem e de hoje; e, por isso, vamos sentar aos pés das testemunhas da humanidade, do século XII ao século XX, e escutá-las. Testemunhas são parâmetros para elevar o nível da nossa existência e convocar ao seguimento e imitação. Quem tem modelos de referência, tem futuro. Nosso tempo tem professores demais e poucos mestres. Professores trazem conhecimento e ensinamento, os mestres trazem a compreensão da vida.
Vamos ouvir, ver e reler as testemunhas de ontem, humanos plenos e, por isso, sempre atuais, para que possamos reencantar a vida, redescobrir valores, acertar o ritmo de nossos passos no caminho seguro, e assim purificar as nossas escolhas. Voltemos aos mestres! Os novos gurus cobram, os mestres estão na gratuidade da partilha. Hoje, nós, que pagamos para ouvir e escutar, vamos ouvir mais a terapêutica transparência das testemunhas. São nossos exemplos os arquétipos, o resgate dos valores neste  nosso atual processo civilizatório. Nós, que gritamos e lutamos pelo que estamos perdendo: espaços e espécies, da falência dos biomas à falência do caráter, que salvamos orquídeas, capivaras e ararinha azul, mico-leão dourado e prédios decadentes, devemos perguntar: e o verdadeiro humano? Será que não é uma espécie em extinção?
Em meio a isso tudo, renasce sempre a figura frágil e forte, santa e simpática, medieval e moderna, despojada e atraente, heroica e holística, poética e mística, aglutinadora e provocadora, a sempre presente e profética vida de São Francisco de Assis. É sobre ele que discorre esta despretensiosa reflexão.
FRANCISCO E O ARQUÉTIPO DA SÍNTESE
Francisco de Assis nasce em 1182, na atraente cidade de Assis, na região da Úmbria, Itália. É filho de Pedro Bernardone, rico comerciante, mercador, homem determinado, que sonhava para o filho as glórias da Cavalaria Medieval e o salto para o status da alta nobreza. De seu pai, Francisco herdou o nome, em homenagem à França, que era o centro cultural e econômico do século XII, e também o espírito de liderança, ambição e rigor consigo mesmo. Da mãe, Joana de Bourlemont, uma dama francesa da região da Picardie, norte da França, conhecida em Assis com o cognome de Dona Picà (a madame que veio da Picardie), Francisco recebeu esmerada educação, a nobreza de costumes, os rudimentos da fé e da língua francesa. Pelos anos 1201 a 1205, ele vai dando um salto em sua vida. Inicia um lento e gradual processo de conversão, não apenas a mudança de mentalidade, mas a radical mudança de lugar. Ele é um convertido e nisto se enquadra a sua forte personalidade, a sua conversão não é um ardor momentâneo, mas sua perene identidade de busca. Sai do espaço da casa e dos projetos de seu pai para ser um humano despojado que não queria ter nada de específico a não ser dispor-se a viver algo de grandioso, algo que fizesse dele um homem realizado. O pai, dono de uma loja de tecidos e uma tinturaria em Assis, queria que ele conhecesse o sucesso do mercado. Francisco não quer o sucesso, quer a realização. O sucesso é efêmero, a realização é para sempre.
Num determinado momento de sua vida, tira as suas roupas em praça pública e, sozinho, nu, livre e feliz com sua decisão empreende um caminho de ir à dimensão originária do verdadeiro humano: buscar o espírito do Senhor e o seu santo modo de operar; fazer valer os desejos, ter uma vida orientada por uma forte busca, dizendo para si mesmo e para quem quisesse ouvir: “É isto que eu quero, é isto que eu procuro, é isto que eu desejo de todo coração!” Despojou-se das vestes e vestiu-se da simplicidade, faz a medieval investidura: colocar na vida a adequação que a torna mais leve. Não mais a armadura de guerreiro que sonhava seu pai, mas a coragem e fortaleza, a fidelidade e lealdade, a obediência dos cavaleiros. Toma por vestimenta a túnica dos camponeses, dos mendigos e penitentes, tornando-se assim um mendicante de sentidos. Na cidade foi amado e incompreendido, abraçado e apedrejado, este limiar entre os que o consideram um santo ou um louco. Francisco é um louco apaixonado pela sua identidade: ser arauto do Grande Rei, fazer o Amor ser amado e ir onde ninguém queria estar.
Renunciou às coisas que a casa de Bernardone oferecia, porque estava na utilidade serviçal das coisas e não no domínio sobre elas. Para nós, o céu é um lugar; para Francisco é Alguém. Seu pai queria que ele fosse o administrador de seus bens, do patrimônio e moedas. Francisco espalhou o dinheiro do pai nas tabernas e boêmia, nas esmolas e cortesia. Francisco não tinha medo do dinheiro, mas sim do abuso e da escravidão que ele pode criar. Seu jeito convida as pessoas de seu século a um rigoroso exame de consciência: que o dinheiro que contagiou a passagem do feudalismo às novas “comunes”, que sempre é importante para as necessidades passageiras, não bloqueie os desejos perenes de felicidade. Ele ensinou a dividir prodigamente; pois quando a humanidade não divide, experimenta estas crises cíclicas de ter muito e não ter nada. Francisco preferiu viver a serenidade do apenas necessário que nunca termina. Francisco não amontoou dinheiro para não amontoar poder.
Francisco não é um cortesão de ricos e nem adulador de pobres. Não considera a situação através do prisma de uma classe social, de um partido político, ou de uma ideologia; ele pensa, vive, age e julga, vai para junto, a partir do modelo do Evangelho que o inspira. O anúncio levado aos simples, pobres e pequenos faz dele a Boa Nova entre os desafortunados de se tempo. Abraçar, beijar e curar feridas de leprosos era deixar-se beijar por uma Inspiração, que se tornou práxis. Ele não é um revolucionário preso a uma barulhenta militância, mas instaura a verdadeira revolução dos autenticamente convertidos: de uma súbita mudança pessoal para uma concreta transformação do comum. Hoje, há organizações, governamentais ou não, que querem a obra, mas não o doente; querem a creche, mas não a criança. Francisco abraçou prioritariamente o humano desesperançoso e descuidado.
Ele não deixou o mundo, mas mudou completamente o seu modo de estar no mundo. É um santo de legenda, não somente uma legenda humana medieval, mas uma legenda divina encarnada a nos ensinar que é preciso submeter o corpo da existência que eu sou às exigências do Espírito. Foi à comunidade humana e disse: “Pace bene, buona gente! Eu estou muito bem entre vocês!” Foi o seu primeiro gesto de generosa atenção e mostrou que o estar no meio de todos de um modo disponível já é um sinal da sua pobreza.
No título desta reflexão o chamamos como ele é mundialmente e carinhosamente conhecido, IL Poverello, pois é o santo da pobreza e dos pobres. Mas que pobreza é esta? Não é o conceito dos que estão fora da categoria econômico-financeira, mas sim a coragem de colocar tudo em comum. Isto mesmo! Ser pobre no sentido do Evangelho é compartilhar. É se afastar de toda forma de egoísmo para dividir o eu, as ideias e o bolso. A renúncia de si mesmo para a conquista de uma liberdade interior que o faz livre, leve, solto, mão aberta e matinal. Francisco filtra a vida cristã a seu modo e a modo do Mestre Jesus, que na pobreza material do dar e receber; e na pobreza interior que é ser desapropriado, humilde e simples, vão gerando o Reino. Pobreza é a não posse; é aquela ousadia de abandonar a casa de Pedro Bernardone com toda sua segurança  para confiar-se à Fraternidade. Pobreza não é renúncia forçada das coisas, mas restituição voluntária de tudo ao Único Dono. Francisco nos ensinou que pobreza é encontrar a verdade de nós mesmos e, com isso, possuir a Única Riqueza que satisfaz o coração humano: Amar e ser Feliz!
Ele é o Penitente. O que é penitência no sentido medieval? Não é castigo, condenação ou gesto externo de mortificação, abstinência, jejum, dieta, vigílias, privação do agradável, infligir dor corporal. Penitência verdadeira é eliminar excessos: de egoísmo, ostentação, comida, apegos materiais, palavras banais, ansiedade, impaciência, intolerância. O verdadeiro penitente é aquele que cada dia pergunta: que está exagerado em mim? E vai aparando as arestas do que tem de sobra, do que tem de mais negativo, para chegar à medida exata do coração. E qual é a medida exta do coração? Teologicamente é voltar cada dia aos caminhos do Senhor; eticamente é fugir de qualquer possibilidade do mal; afetivamente é amar intensamente, incondicionalmente e fazer continuamente o bem sem importar a quem. Ele é uma moderação contida, uma sensibilidade equilibrada, um espectador  atento do  belo espetáculo  da vida. A penitência de Francisco não era sair fazendo exageros, mas estar ao lado dos que sofriam, comer o que o povo come.
Quando afirmamos que ele é o Arquétipo da Síntese é porque a sua mística é simples: ele é um homem encarnado até o pescoço no infinito; em sua vida o finito evoca o infinito. Nele a alteridade é assim: ser fraterno sempre! Francisco e seu grupo primitivo de frades não fizeram fraternidade através da simpatia ou empatia pessoal; fizeram da fraternidade uma escuta comum da vontade do outro e uma convocação exigente para viver a beleza, a dignidade, as diferenças e os limites do outro. O feminino emergiu nele porque Maria, a Mãe Divina, e Clara de Assis o inspiraram a pensar assim: “Francisco, se você quer ser a sabedoria de um pobre, viva no vigor do Espírito, na Sensibilidade Vital da percepção que penetra através da superfície da realidade e acolhe a vida com admiração, reverência, coração, ternura e amor”. O diálogo inter-religioso é sua ida ao Oriente,  conversar com o sultão no diferente da crença e no igual da mesma fome e sede de fé. O princípio ecológico de Francisco é a capacidade de maravilhar-se diante da grandeza das obras da Criação e a atuação do Divino Criador nos detalhes de tudo.
Ele é um itinerário espiritual e um humano evoluído, uma convocação para um tipo melhor de humanidade a qual todos somos chamados. Sua atração nos tempos de hoje é que ele, cada vez mais, lido, conhecido, reverenciado e buscado contribui para o ressurgimento de um novo tipo de ser humano.
FRANCISCO E A MÍSTICA
Mística é a introdução nos mistérios do sagrado e da vida, é estar imerso na vida com as motivações mais profundas. Francisco, ao dispor-se à vida, ao buscar o que ele mesmo não sabia, deixou-se conduzir pelo Senhor, deixou-se conduzir pelos confrontos e foi conduzido ao que procurava. Diz ele em seu Testamento: “Foi assim que o Senhor concedeu a mim, Frei Francisco, começar a fazer penitência: como eu estivesse em pecados, parecia-me sobremaneira amargo ver leprosos. E o próprio Senhor me conduziu entre eles, e fiz misericórdia com eles. E afastando-me deles, aquilo que me parecia amargo se me converteu em doçura de alma e de corpo”.  Mística também significa guardar um segredo, recolher-se para colher o melhor; entrar na intimidade de Deus, de si mesmo, da vida. Francisco, quando olha de um modo intenso para si mesmo, é porque primeiro olhou para Deus; saiu do rumor da cidade e recolheu-se nas cavernas, florestas e eremos; para ele, os eremitérios não eram lugares para ficar, mas para sair. Chegar ali, abastecer-se de silêncio, prece e recolhimento e sair. O eremo não acentuava um isolamento, uma alienação, uma fuga da convivência, um individualismo, mas um preparar-se para a fraternidade, para a comunidade. Hoje, muita gente fracassa socialmente porque não tem o recolhimento da profundidade pessoal.
Mística é o húmus que faz desabrochar, o oculto que desvela a intimidade que transparece. É beber na fonte de toda inspiração, ter as mais fortes convicções. A sua vontade bem trabalhada é o fio condutor de sua vida e que coloca a sua vida em movimento; a sua mística é a energia de amor e fé que passa por dentro deste fio; é uma energia divina  que acende e faz com que o mundo inteiro se ilumine com a presença de Deus em Francisco.
Francisco não criou uma escola teológica, mas sua teologia é uma descoberta feita na prática dos divinos mistérios que acompanham o seu itinerário. A sua mística é mergulhar no Deus Altíssimo. Do Beato Egídio, companheiro de São Francisco e grande contemplativo, temos a afirmação de uma profundidade e atualidade extraordinária: “O homem faz de Deus uma imagem segundo a sua compreensão, mas Deus é sempre tal e qual”.  A partir deste Dito de Frei Egídio, podemos dizer da singularidade de São Fran cisco e sua experiência de Deus: ele deixa Deus ser Deus. O Santo de Assis é, sobretudo, conhecido como o amante da Senhora Dama Pobreza, como o cantor das belezas criadas, como o homem evangélico por excelência, como o verdadeiro frade menor, mas nos seus Escritos e nas Fontes Franciscanas ele é apresentado como o “Servo de Deus”;  e entre os seus primeiros biógrafos encontram-se numerosas afirmações que centralizam a experiência primária de Francisco como experiência de Deus.
Francisco transferiu a sua relação com Deus a um plano de concretude  transparente e intensamente vivida. Hoje, ele ainda é qualificado como o “Peregrino do Absoluto”. Vejamos as evidências da mística de Francisco nestes relatos de seu biógrafo Tomás de Celano: “Francisco, o homem de Deus, corporalmente distante do Senhor, lutava para manter o espírito presente no céu; e, já feito concidadão  dos anjos, somente a parede  da carne o separava. Toda a sua alma tinha sede de seu Cristo, ele lhe dedicava não só todo o coração, mas também todo o corpo. Relatamos umas poucas maravilhas das suas orações a serem imitadas pelos pósteros, o quanto vimos com nossos olhos, conforme é possível transmitir a ouvidos humanos.
Fazia de todo o tempo um ócio santo para gravar a sabedoria no coração, para parecer que não fracassava, caso não progredisse. Se por acaso as visitas dos seculares ou quaisquer negócios o surpreendiam, interrompendo-o antes de terminar, ele voltava novamente às realidades interiores. Na verdade, o mundo era insípido para quem se alimentava da doçura celeste, e as delícias divinas o fizeram delicado para as grosserias dos homens. Para não estar sem cela, fazia do manto uma pequena cela. Muitas vezes, faltando-lhe o manto, para não revelar o maná escondido, cobria o rosto com a manga. Sempre interpunha algo aos presentes, para que não conhecessem o toque do esposo, de modo que inserido entre muitos no estreito espaço de um navio, rezava sem ser visto. Finalmente, não podendo nada destas coisas, fazia do peito um templo. O esquecimento de si e a absorção em Deus fizeram desaparecer tosses e gemidos, respirações duras e gestos externos”.
“Estas coisas em casa. Mas, rezando nas florestas e nos lugares solitários, enchia os bosques de gemidos, banhava os lugares de lágrimas, batia com a mão no peito e aí, encontrando como que um esconderijo mais oculto, conversava com palavras com seu Senhor. Aí respondia ao Juiz, suplicava ao Pai, conversava com o Amigo, divertia-se com o Esposo. Na verdade, para tornar todas as medulas do coração um holocausto múltiplo, propunha de maneira múltipla diante dos olhos Aquele que é Sumamente Simples. Muitas vezes, com os lábios imóveis, ruminava interiormente e, arrastando para o interior as realidades exteriores, elevava o espírito às superiores. Assim, totalmente transformado não só em orante, mas em oração, dirigia toda a atenção e todo afeto a uma única coisa que pedia ao Senhor. De quanta suavidade crês que ele estava repleto nestas coisas? Ele o soube, eu, pelo contrário, apenas admiro. Ao que faz a experiência é dado conhecer, aos que não experimentam não se concede. Deste modo, fervendo intensamente  no fervor do espírito, e todo o aspecto exterior e toda a alma completamente derretida, já morava na suprema pátria do Reino Celeste”.
Francisco sabia perfeitamente que “O Pai habita em luz inacessível, e é Espírito, e ninguém jamais o viu”.  Deus é um ser misterioso e transcendente e assim se apresenta na experiência de Francisco. Como homem místico ele é assinalado com a experiência fortíssima do Deus Mistério, e a utiliza, assim chamada mística da teologia negativa, para dar uma primeira categorização da transcendência divina: Deus é inenarrável, inefável, incompreensível, ininvestigável, imitável, invisível. É um Deus fora de qualquer conceito, incompreensível no plano da introspecção intelectual.
O que o encanta em Deus é o modo como Ele se dá em sua infinita generosidade. Em Deus, Francisco vê o Pobre de todos os pobres porque faz esparramar a sua bondade sobre todas as coisas. Em Deus ele encontra o primeiro fundamento de sua vida de pobreza e serviço. Francisco nos ensina que servir é algo divino porque o próprio Deus é o grande Servo do universo. Na bondade de Deus, Francisco aprende a ser um servo bom, um obediente servo que admira a grandeza de seu Senhor. A bondade vem da obediência e da fidelidade. Servo que não é bom não dá conta. Ser servo não é só ter a intensão de servir, tem que servir bem e na inspiração da bondade do Senhor. O jeito da vassalagem medieval não se justifica pela intenção, mas pelo trabalho de ser bom e leal. Francisco nos evoca que, um raio apenas do Irmão Sol, mostra a bondade de Deus em nos servir.
Em suas preces a relação com o Senhor é intensa, a sua oração se alimenta da real presença de Deus e não de sentimentalismo. A real presença de Deus traz-lhe vestígios que devem ser imitados. Para Francisco, Deus, ao se manifestar, não se revela como majestade, força, doador supremo, enfim como ser supremo; mas sim como Servo cheio de benignidade, bondade, gratuidade, graça, serviço. Deus é o Servo de toda humana criatura e de todos os seres. “Meu Deus e meu Tudo!”, assim exclama, admira, contempla, repete noite adentro, horas inteiras, invoca… adensa a sua experiência em saborear a presença palpável do Sagrado.
A mística de Francisco é seu total envolvimento com Jesus Cristo, o Deus Encarnado. Para ele, Jesus Cristo é o Deus Homem, Servo e Senhor; vai acolhendo Jesus Cristo progressivamente como um Vivente, uma imitação perfeita, uma prática, tornou-se a arte de viver Cristo. O Senhor Jesus e as Palavras de seu Evangelho são o seu vivo itinerário. É o Cristo do Presépio, da Cruz e do Altar.
Sua paixão pela Encarnação fez com que ele representasse, pela primeira vez, na noite de Natal de 1223, no bosque de Greccio, a cena do Nascimento do Senhor. No seu ímpeto místico vê, contempla, refaz. Com esta encenação do presépio, ele quer nos mostrar que entrar na Palavra é entrar na imagem. Ele vê a grandeza e a onipotência de um Deus se revelando na figura de um Menino.
Contempla com profundo afeto o Verbo Encarnado que se fez uma simples criança pobre, por amor. Francisco tem uma relação forte com o Evangelho, ali não está simplesmente um texto, mas Alguém falando. Diz Tomás de Celano: “A mais sublime vontade, o principal desejo e supremo propósito dele era observar em tudo e, por tudo, o santo Evangelho, seguir perfeitamente a doutrina e imitar e seguir os passos de Nosso Senhor Jesus Cristo com toda vigilância, com todo empenho, com todo desejo, da mente e com todo fervor do coração.
Recordava-se em assídua meditação das palavras e, com penetrante consideração, rememorava as obras dele. Principalmente a humildade da encarnação e a caridade da paixão, de tal modo ocupavam a sua memória que mal queria pensar outra coisa. Deve-se, por isso, recordar e cultivar em reverente memória o que ele fez no dia do Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo (…) Lembrar o Menino que nasceu em Belém, os apertos que passou, como foi posto num presépio, e ver com os próprios olhos como ficou em cima as palha, entre o boi e o burro”.
Representar ao vivo a narração evangélica é ir para dentro da paisagem do mistério da Encarnação. É algo intensamente forte e vivo: “Muitas vezes, quando queria chamar o Cristo de Jesus, chamava-o também, com muito amor, de Menino de Belém, e pronunciava a palavra “Belém” como o balido de uma ovelha, enchendo a boca com a voz, mais ainda com doce afeição. Também estalava a língua quando falava “Menino de Belém!” ou “Jesus”, saboreava a doçura dessas palavras”  .  “Francisco sabe que o caminho da Encarnação é um caminho de contradição. Mas sabe que é o único. Daí aquele cena extraordinária em Greccio. Ele quer evocar os incômodos e sofrimentos que Jesus sofreu, desde a infância, para nos salvar. Deus veio pobre entre os pobres” .
Da manjedoura à cruz. O humilde está nos lugares fora do comum considerado normal. Ninguém quer a cruz, somente um Deus abraçou-a pra valer. A vida de Francisco foi ter paixão pela Paixão do Senhor. A admiração é tanta que ele olha para a cruz e não é capaz de proclamar o sofrimento. Entra no sofrimento do Amado que consegue ter brilho nos olhos e cantar. O primeiro contato de Francisco com a cruz foi nas ruínas da capela de São Damião. Um Crucifixo bizantino com o Cristo vivo e de olhos abertos. Diz a Legenda que ali a Cruz falou: “Vai, Francisco! Não vês que a minha casa está em ruínas? Reconstrói a minha  casa!”.
A cruz foi a única coisa que ele encontrou em pé em todo desmoronamento. Ele chegou a São Damião, em 1205, entre dúvidas, enigmas, crises e incompreensões. Diante da cruz, descobre que uma vontade bem trabalhada dá coisa grandiosa. Com ele aprendemos que cruz não é fim, mas, sim, fonte. É preciso encontrar, em meio a ruínas, o nosso chão, ouvir uma inspiração e colocar tudo novamente em pé. De São Damião ao Monte Alverne, onde ele recebe as marcas do Crucificado, o Amor o marca definitivamente. Traz na própria carne as marcas do Iniciado: o Amor tomou forma em seu corpo! Em São Damião, ele contempla e vê o Crucificado; no Alverne, ele entra em sua Carne Sagrada. Cruz não é para ver, mas para entrar dentro do mistério. Por não aguentar isso a tiramos das paredes.
Quando somos capazes de abrir o coração para o sofrimento de alguém, algo começa a falar dentro de nós. Ao abraçar o leproso, ele tem um encontro transformante. Amor pede encontro, pede aproximação, união, pede que se toque os dedos nas chagas. Temos que ser marcados pelo Amor, mesmo nos momentos mais difíceis. Tudo o que aconteceu na vida de Francisco foi de grande intensidade.  Ele, com a as suas chagas iguais a de Cristo, está nos dizendo que também temos que ser estigmatizados.
Não existe ninguém que não tenha sido marcado pelo Amor sem um mínimo de sofrimento. Não devemos ter medo de abraçar o sofrimento, ele nos leva a outros horizontes. Não se chega ao Monte Alverne para ficar, mas para voltar e dizer a todos que quanto mais alguém vive uma profunda experiência afetiva espiritual, mais se torna presente. Em São Damião, Francisco viu o rosto do Amor; na Porciúncula, lugar da Fraternidade, ele viu o Corpo do Amor; no Monte Alverne, ele viu onde o Amor é capaz de chegar: morrer por amor, se for preciso!
Na Eucaristia, Francisco contempla um Deus que se dá como alimento. Um Deus que nos abraça por dentro, com um amor visceral. É preciso alimentar-se de uma força espiritual. Diz em seus Escritos: “Diariamente, ele vem a nós em aparência humilde; diariamente, ele desce do seio do Pai sobre o altar nas mãos do sacerdote.
E, assim, como ele se manifestou aos santos apóstolos na verdadeira carne, do mesmo modo ele se manifesta a nós no pão sagrado. E, assim, como eles, com a visão de seu corpo só viam a carne dele, mas contemplando-o com olhos espirituais, criam que ele é Deus, do mesmo modo também nós, vendo o pão e o vinho com os olhos do corpo, vejamos e creiamos firmemente que é vivo e verdadeiro o seu santíssimo corpo e sangue. E, desta maneira, o Senhor está sempre com seus fiéis, como ele mesmo diz: Eis que estou  convosco  até o fim dos tempos!” (14).
A Eucaristia é um encontro de corpos, o meu corpo vai ao encontro do Corpo do Senhor; neste momento, enraizado na terra ele abraço o céu. O Corpo do Senhor é a dádiva que cada dia o céu nos proporciona. É o livre doar-se do sustento de corpo e alma. Numa de suas Cartas, Francisco diz: “Pasme o homem todo, estremeça o mundo inteiro, e exulte o céu, quando sobre o altar, nas mãos do sacerdote, está o Cristo, o Filho de Deus vivo. Ó admirável grandeza e estupenda dignidade! Ó sublime humildade! Ó humilde sublimidade: o Senhor do universo, Deus e Filho de Deus, tanto se humilha a ponto de esconder-se, pela nossa salvação, sob a módica forma de pão! Vede, irmãos, a humildade de Deus e derramai diante dele vossos corações; humilhai-vos também vós, para serdes exaltados por ele. Portanto, nada de vós retenhais para vós, afim de que totalmente vos receba aquele que totalmente se vos oferece” .
FRANCISCO E A ALTERIDADE
Francisco, ao viver de um modo intenso a fraternidade, antecipa paradigma da alteridade. O que é alteridade? É levar demais em conta a grandeza e a dignidade da pessoa, criar relacionamentos fecundos de amizade, de convívio, de coexistência. A experiência alteritária clama: você é a soma de muitos; não é a aniquilação do “ego”, mas uma grande ampliação e complementação. A Legenda Franciscana, chamada o Espelho da Perfeição, em seu conhecido e atraente capítulo 85, narra que, quando perguntaram a Francisco o que seria um verdadeiro frade menor, ele responde que, “transformados os frades pelo ardor do amor e pelo fervor do zelo que tinha pela perfeição deles (…) pensava muitas vezes dentro de si sobre as qualidades e virtudes que deviam ornar um bom frade menor. E dizia que seria bom frade menor aquele que tivesse a vida e as qualidades destes santos frades (…)”
E a Legenda continua elencando, de um modo belíssimo, que deviam reunir a fé de Frei Bernardo; a simplicidade e a pureza de Frei Leão; a cortesia de Frei Ângelo, que foi o primeiro cavaleiro a entrar na Ordem e que era ornado de gentileza e benignidade; o aspecto gracioso, o senso natural e a conversa agradável e devota de Frei Masseo; a mente elevada em contemplação de Frei Egídio; a virtuosa e constante oração de Frei Rufino; a paciência de Frei Junípero; o vigor corporal e espiritual de Frei João das Laudes, que ultrapassava a todos com a força física; a caridade de Frei Rogério e a solicitude de Frei Lúcio.
Alteridade e o encontro perceptível e sensível com as qualidades do outro, é fazer existir e acontecer o “tu” muito mais do que o “eu”. É olhar a outra pessoa de um modo que ela seja, exista, aconteça em sua diferença e singularidade. É desapegar-se de qualquer superioridade e status. A minoridade é a grande virtude franciscana da alteridade, pois é a renúncia do poder de quem tem, de quem sabe e de quem pode, para viver a reciprocidade nas relações. É um encontro de afeto e um transformar a convivência numa causa, num projeto, num ideal, numa obra que respire valores e buscas comuns. É olhar o outro como um espelho, como relata a Legenda acima citada. Especular é olhar alguém a partir do reflexo de algo maior. Permitir que o outro se revele em sua identidade. Retomar as mais belas amizades que são a concretização da mais pura alteridade.
Hoje vivemos a grande crise da alteridade por causa da perda do sentido dos outros. Há a fragmentação da família, a desatenção a idosos, enfermos e crianças, a intolerância, impaciência, nacionalismos e regionalismos que vêm à tona, preconceitos, exclusão, segmentação de linhagens, indiferença para com os indígenas, xenofobia e outras atitudes de indiferença, agressão e morte.
Para Francisco, nada do que era humano era estranho; ele recuperou a pertença ao grupo humano e ao convívio com todos os seres. Para ele, mais importante do que viver é conviver.
É preciso intuir com ele que a fraternidade é o grande princípio para novamente estabelecer uma nova humanidade. Com o seu grupo primitivo, que na intensa vivência fraterna são modelos de alteridade, aprendemos a não viver no grupo da mediocridade e da banalidade, mas sim dos que têm o vigor do espírito para encontrar o sentido de estar juntos.
Vejamos o que diz uma Legenda Franciscana: “Quando voltavam a se ver, enchiam-se de tão grande prazer e de alegria espiritual que não se recordavam de nada da adversidade e, mormente, da pobreza que padeciam (…) Amavam-se uns aos outros com profundo amor, serviam-se e nutriam-se mutuamente, como uma mãe serve e nutre seu filho. Tanto ardia neles o fogo da caridade que lhes parecia fácil entregar seus corpos, não somente pelo nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, mas também um pelo outro, de boa vontade (…). Estavam arraigados e fundados no amor e na humildade, e um reverenciava o outro como se fosse seu senhor. Quem entre eles sobressaía pelo ofício ou por qualidade parecia mais humilde e desprezível do que os outros. Igualmente, todos se dispunham totalmente a obedecer: quando se abria a boca de quem ordenava, imediatamente estavam preparados seus pés para andar e as mãos para trabalhar. Qualquer coisa que lhes era ordenada julgavam que lhes era ordenada segundo a vontade do Senhor; e, por isso, era-lhes suave e fácil executar tudo”.
FRANCISCO E O FEMININO
Francisco de Assis, há oito séculos, usava a seu modo, uma linguagem de gênero. É o seu jeito de lembrar, como um bom medieval, que tudo o que acontece é a vida também nos exercitando. Usa palavras para instaurar consciência e prática. Gostava de dizer Irmã Lua, Irmãs Estrelas, Irmã Água, Irmã Clara, Irmã e Mãe Terra. De onde vem esta sua fala  ritual e natural?
Da presença em sua vida de três grandes mulheres: sua mãe Jehanne de Bourlemont, Dona Picà; a Virgem Maria, a Mãe Divina e Clara de Assis. Estas três mulheres ensinaram para ele que receber amor exige muita humildade, muito acolhimento, muita confiança. É ir do simples para o grande, do pobre ao coletivo.
A pobreza de Francisco tem muito a ver com a grandeza do amor que recebeu, porque ser pobre é deixar uma obra maior de amor aparecer. Estas três mulheres são a sua fonte de amor, o feminino que o molda e o leva a escolher um Único Amor para ser livre.
Em sua mãe biológica, Jehanne de Bourlemont, a Dona Picà, Francisco é educado na ternura e com muito carinho. Ser amado e educado assim gera pessoas normais. Quem é Dona Picà? Como já citamos, o nome original da mãe de Francisco, no francês provençal é Jehanne, Giovanna em italiano e Joana em português. Ela nasceu na região da Picardie, norte da França. Os Bourlemont trazem o sobrenome forte das famílias típicas deste lugar, com seu passado nobre e vigoroso.
A grande heroína e santa francesa, Jeanne d’Arc, tem raízes na Picardie e, provavelmente, é descendente dos Bourlemont. Ainda criança, Jehanne muda-se com a família para a região da Provence e vai se estabelecer em Tarascon. Numa típica capela medieval de Tarascon, do século IX, dedicada a São Vitor, que a mãe de Francisco foi batizada. Ali viveu, casou-se, ficou viúva e conheceu Pedro Bernardone, o pai de Francisco, que a leva para Assis.  Em Assis, esta nobre e fina mulher não passa despercebida. É querida pelos assisienses, que na dificuldade de pronunciar o seu nome francês, carinhosamente o abreviam chamando-a como Dona Picà. Ela ensinou a Francisco o francês com dialeto provençal, cantou com ele as Cantiga de Amor, as Cantigas de Amigo e Canções de Gesta da nobre Cavalaria Medieval. Percebeu os dons naturais e as virtudes conquistadas de Francisco. Deu a ele a fé e trabalhou suas qualidades.
Toda virtude natural bem trabalhada leva à perfeição. Como o pai, devido ao seu ofício de mercador, vivia muito ausente de casa, Dona Picà está sempre mais próxima ao filho e passa para ele o “esprit de finesse”, a alegria, a positividade do querer. A maturidade afetiva dada pela mãe influenciou a sua liberdade interior. Diz Tomás de Celano: “E aconteceu que, como seu pai por causa familiar urgente se tivesse ausentado por algum tempo de casa e como o homem de Deus permanecesse algemado na prisão da casa, sua mãe, que ficara sozinha com ele em casa, não aprovando o ato de seu marido, consola o filho com palavras ternas. E ao ver que não podia chamá-lo de volta de seu propósito, suas entranhas maternas se comoveram para com ele e, tendo quebrado as cadeias, permitiu que ele partisse livre”.
Em Maria, a sua Mãe Divina, ele vive o encantamento de saber que ela é a primeira casa que hospedou o Senhor. Ele professa a fé em Maria como a primeira seguidora de Jesus Cristo, aquela que traz para sempre o Senhor para a história, a Esposa do Espírito Santo, a Virgem feita igreja, ela sozinha é a igreja em perfeição. O que ele escreve de melhor para a Mãe de Deus é esta Saudação: “Ave, Senhora Rainha santa, santa Maria mãe de Deus, virgem feita igreja e que do céu foste escolhida pelo santíssimo Pai, a quem ele consagrou com seu santíssimo e dileto Filho e com o Espírito Santo Paráclito, e em quem esteve e está toda a plenitude da graça e todo o bem! Ave, palácio do Senhor! Ave, tabernáculo do Senhor! Ave, casa do Senhor! Ave, vestimenta do Senhor! Ave, serva do Senhor! Ave, mãe do Senhor, e vós santas virtudes todas, que pela graça e iluminação do Espírito Santo sois infundidas nos corações dos fiéis para os tornardes de infiéis em fiéis a Deus!”.
Em Clara de Assis, a mãe cuidadosa do Mosteiro de São Damião, ele aprende que não basta seguir o Senhor, tem que se apaixonar por ele; seguimento é enamoramento. Clara recolhe-se contemplativa em seu mistério de esposa do Rei. No silêncio de São Damião, Clara escolhe o Único Amor para ser livre no Espírito. Assim como Maria, Clara se esconde na Eucaristia do Filho e vai ser a guardiã da Inspiração, vivendo para sempre aos pés do Crucifixo de São Damião. Uma escolha radical e total para viver a virgindade de Maria. No recolhido do claustro, o Verbo Encarnado é gerado cada dia e sua Palavra ressoa nas preces de quem guarda o Segredo. É um esconder-se para encontrar-se. Abandonar a sabedoria do mundo para se transformar na nova sabedoria do Evangelho. A identidade comum de Clara e Francisco é não perder jamais o sentido originário do Espirito. Não perder de vista o ponto de partida (20).
Amar a vida até o fim, até a sua mais profunda raiz para reencontrá-la em sua Fonte. Clara jamais saiu de perto do Crucifixo e foi, exatamente ali, que Francisco não queria que se apagasse uma lâmpada. Francisco encontrou em Clara o seu coração esponsal e a certeza de sua escolha. Em corações abertos para o Absoluto, o Pai sempre deposita a semente do Sim! Em Clara, a mulher pode encontrar a razão sagrada de sua feminilidade; em Clara, Francisco encontrou a razão de sua alma de mãe e pai de uma imensa família espiritual.
FRANCISCO E O DIÁLOGO INTER-RELIGIOSO
Religiões fazem mais um movimento ecumênico do que um diálogo religioso. Ecumenismo é estar entre os da mesma casa, por exemplo, a aproximação entre as igrejas cristãs; experiência inter-religiosa é dialogar com os desafios do pluralismo cultural e religioso presente em outras fronteiras. Mesmo que nos atinja em nossa acomodação da nossa profissão de fé, o paradigma do diálogo inter-religioso hoje é este: há mais verdades no conjunto das religiões do que no dogma isolado de cada uma delas. Francisco e o franciscanismo sempre foram referências desta verdade pela vivência da fraternidade. Como crer sem relacionar-se com o diferente? Em tempos de globalização, a fé também encontra um horizonte amplo de experiências. Por caminhos diferentes, todos chegamos à mesma busca de Deus. Nem sempre é possível dialogar com o dogma e a doutrina, mas é sempre possível fazer unidade na espiritualidade.
O diálogo inter-religioso não coloca em risco nenhuma identidade religiosa; a identidade cristã não corre risco se tiver que ir ao encontro do diferente de si mesma. É preciso amar apaixonadamente a sua religião, mas respeitar por demais a religião do outro. Como entender a singularidade da fé do diferente se eu não faço uma aproximação? No catolicismo temos a intercessão dos santos e das santas. É possível uma intercessão sem comunhão? Como acreditar se não conheço nada da vida do padroeiro? Tem muita gente que faz promessas a Santo Expedito, mas não sabe quem ele é. Francisco é um santo amado porque é conhecido e deixa-se conhecer. Não podemos estabelecer uma postura crítica sem um verdadeiro conhecimento. Ou será que para nós, manipulados pelos  bombardeios midiáticos e ideológicos, pelos conchavos dos senhores das armas, acreditamos que os muçulmanos  são sinônimo de terroristas? O diálogo inter-religioso repara injustiças que estão incrustradas em nossa tacanha mentalidade, que tem um horizonte muito redutivo e reza olhando para o próprio umbigo.
Crer é ter uma nova sensibilidade. Deus é maior que qualquer religião. Fé não é fechamento, mas abertura para o que a vida tem de esperança, de futuro, de utopias, de encontros e certezas.  Jesus pregou o Reino que está além das muralhas das fortes tradições. Ele não mandou o jovem rico morar na perfeita comunidade de Qunram, mas pediu que ele amasse os pobres e dividisse os seus bens, que ele aprendesse que é preciso eternizar-se defendendo a integridade da vida e do ser humano.
Como Francisco aparece nesta verdade? Ele tem bilhete de entrada em todas as culturas e em todas as religiões porque é alguém reconciliado com a vida, com as pessoas, com o verme da estrada, e apaixonado a ponto de transformar o seu Deus na Senhora Dama Pobreza e casar com este projeto. Ele é um santo que viveu tão intensamente o seu tempo que atravessou épocas. Reconstrói a casa da existência calejando as mãos erguendo as ruínas de São Damião. Deu um sentido fraterno e coletivo à existência. Integra todos os significados e símbolos. Há algo de sadio em suas sandálias, hábito, cordão, Tau, cruz, Porciúncula, estigmas e aquele jeito de dizer as criaturas. Porque aprendeu que orar nos bosques pode ir melhor ao Papa. Pregou aos pássaros e praças cheias de gente. Conheceu as dores morais e materiais dos desfavorecidos. Sua escolha religiosa tinha uma missão: melhorar a humanidade a partir do protótipo do humano divinizado, Jesus Cristo! A partir daí foi ao mundo do ocidente e do oriente pregando a paz e o bem. Não foi às Cruzadas para dialogar com espada e lança. Foi para procurar pacificar com o escudo da fé. Quem vive bem Santa Maria dos Anjos pode ser bem recebido na tenda do sultão. É um itinerante com coração de monge, um fundador de uma Ordem com o hábito de camponês, um cantor do Irmão Sol e das glórias do Altíssimo. Um dia saiu de Assis e foi a Damieta, no Egito; passou pelas fileiras dos Cruzados em campo de batalha e foi conversar com Melek-el-Kamil:
“E o sultão, vendo no homem de Deus o admirável fervor de espírito e a virtude, ouvi-o com prazer e convidava-o com insistência a morar com ele”.  “Não somente os féis de Cristo, mas também os sarracenos (…), admirando-lhes a humildade e perfeição, quando por causa da pregação se aproximam deles intrepidamente, recebem-nos com boa vontade, providenciando as coisas necessárias com ânimo grato. Vimos que o primeiro fundador e mestre desta Ordem – a quem  todos os outros obedecem como a seu prior gera -, homem simples e iletrado, amado por Deus e pelos homens, chamado Frei Francisco, foi levado a tal excesso de ebriedade e fervor de espírito que, quando chegou ao exército dos cristãos diante de Damieta, na terra do Egito, dirigiu-se intrépido e munido com o escudo da fé ao acampamento do sultão do Egito. Como o tivessem detido no caminho, disse: “Sou cristão, conduzi-me ao vosso senhor”. (…) Os sarracenos ouvem de bom grado os mencionados frades menores todo o tempo que pregam a fé em Cristo e a doutrina evangélica, enquanto não contradizem manifestadamente com sua pregação a Maomé”.
FRANCISCO E A QUESTÃO AMBIENTAL
Francisco é aquele, que ao receber a convocação para reconstruir a casa, de um modo imediato põe-se em ação. A Idade Média nos legou este seu modelo vivo e grandioso, um humano enamorado pela vida e pelo Deus da vida. E os dias de hoje o que tem para nos oferecer? Certamente, existem muitas pessoas envolvidas com o cuidado da nossa casa, o belo planeta terra; por outro lado, se hoje vivemos a assim chamada crise ecológica é porque existe muita gente que não sabe estar em casa. Há uma crise de relação entre o humano e a natureza, e isso afeta valores e identidade. Aqui, também, entra a provocação de Francisco. Ele está lá onde floresce a verdade, a formação de um humano total, onde viceja a fraternidade, amor, ternura, comunhão com tudo e com todos.
Ecologia é o discurso sobre a casa, seu cuidado e preservação. Nunca se falou tanto em defender, promover, valorizar e estar ao lado da vida. Se existe esta fala e as ações em função das questões ambientais, é porque há evidências e consequências de que a nossa Irmã e Mãe Terra, como chamava Francisco, está agredida, usada, ameaçada, explorada de um modo desenfreado e desumano. A questão ambiental é o grande tema do momento e gera grandes congressos, fóruns, cúpulas, debates e preocupações. Ocupa as razões da ética e a argumentação holística, traz a reflexão mais aguçada para a totalidade humana. Teria sentido uma ecologia que esqueça a antropologia? O paradigmático Salmo 8 proclama: “Senhor, nosso soberano, como é grandioso teu nome em toda terra! Quando contemplo o céu, obra de teus dedos, a lua e as estrelas que fixaste, o que é o homem, para que te lembres dele, o ser humano, para que com ele te ocupes?”
Francisco de Assis pregou e viveu a fraternidade como uma relação e não deixou a parte o relacionamento de todo ser vivente. Viver a fraternidade universal é dar condições de vida a tudo o que vive, é sentir-se irmanado com animais, minerais, vegetais, macrocosmo e microorganismos. Relacionar-se para cuidar e transformar para o melhor, equilibrar o potencial da vida. “São Francisco de Assis, uma tão elevada personalidade, mostrou ao mundo o que significa exercer uma subjetividade integrada e solidária com os seres e suas fragilidades, sem restringir o acolhimento a quem quer que seja, celebrando a profunda vibração da vida que está no recôndito da existência. Acima das ideias e ideologias, medos e apegos, estava ali a receptividade, simplicidade e equilíbrio dinâmico do humano no mundo”.
Francisco de Assis deixou-se conduzir por Deus, mas sempre mergulhado na terra, irmão de toda criatura. Não quis ser dono ou senhor de nada e de ninguém, quis apenas ser o irmão da água, do fogo, do sol, da lua, dos pássaros, das florestas e das plantas, captando assim que a vida é parte de um todo. Colocou-se na esteira admirável do engrandecimento e respeito por todo ser criado, nada destruindo, nada ferindo, nada prejudicando, quase que pedindo licença para pisar a terra, desculpando-se com seus irmãos e irmãs criaturas por não servi-los bastante. Vejamos o que nos dizem as Fontes Franciscanas:
“Quanta alegria julgas que a beleza das flores lhe trazia à mente, quando ele via a delicadeza da forma e sentia o suave perfume delas? Voltava logo o olhar da consideração para a beleza daquela flor que, brotando luminosa no tempo da primavera da raiz de Jessé, ao seu perfume ressuscitou milhares de mortos. E quando encontrava grande quantidade de flores, de tal modo lhes pregava e as convidava ao louvor do Senhor, como se elas fossem dotadas de razão. Assim também, com sinceríssima pureza, admoestava ao amor divino e exortava a generoso louvor os trigais e vinhas, pedras e bosques e todas as coisas belas dos campos, as nascentes das fontes e todo verde dos jardins, a terra e o fogo, o ar e o vento. Enfim, chamava todas as criaturas com o nome de irmão e, de maneira eminente e não experimentada por outros, percebia com agudeza as coisas ocultas do coração das criaturas, como quem já tivesse alcançado a liberdade gloriosa dos filhos de Deus”.
“Tendo pressa de sair deste mundo como de um exílio de peregrinação, este feliz itinerante era auxiliado pelas coisas que estão no mundo, e realmente não pouco. Usava o mundo como campo de batalha, mas também o usava, com relação a Deus, como espelho limpidíssimo de sua bondade. Em qualquer obra de arte, ele exalta o Artífice e atribui ao Criador tudo o que descobre nas coisas criadas. Exulta em todas as obras das mãos do Senhor e intui, através dos espetáculos do encantamento, a razão e causa que tudo vivifica. Reconhece nas coisas belas aquele que é o mais Belo; todas as coisas boas lhe clamam: “Quem nos fez é o Melhor”. Por meio dos vestígios impressos nas coisas ele segue o Amado por toda parte e de todas as coisas faz para si uma escada para se chegar ao trono.
Abraça todas as coisas com o afeto de inaudita devoção, falando com elas sobre o Senhor e exortando-as a louvá-lo. Poupa os candeeiros, lâmpadas e velas, não querendo com sua mão extinguir o fulgor que era sinal da luz eterna. Anda com reverência sobre a pedra em consideração daquele que é chamado de Pedra. Quando precisa recitar aquele versículo: Vós me exaltastes sobre a pedra, para expressá-lo mais reverentemente, diz: “Vós me exaltastes aos pés da Pedra”.
Proíbe aos irmãos que cortam lenha cortar pelo pé toda árvore, para que tenha esperança de brotar de novo. Manda que o hortelão deixe sem cavar a faixa de terra ao redor da horta, para que, a seu tempo, o verdor das ervas e a beleza das flores apregoem que é belo o Pai de todas as coisas. Manda traçar um canteiro na horta para as ervas aromáticas e que produzem flores, para que elas evoquem os que as contemplam à recordação da suavidade eterna.
Recolhe do caminho os vermezinhos, para que não sejam pisados, e manda que sejam servidos mel e ótimos vinhos às abelhas, para que elas não morram por falta de alimento no rigoroso frio do inverno. Chama com o nome de irmão todos os animais, conquanto entre todas as espécies de animais prefira os mansos. Quem seria capaz de narrar tudo? Na verdade, toda aquela bondade fontal, que há de ser tudo em todos, já se manifestava a este santo como tudo em todos”.
Quem escreveu o Gênesis, certamente, andou primeiro pela natureza. Francisco não tem uma relação romântica com as coisas, como podemos pensar, mas sim uma relação de consanguinidade. Ele não conquistou o mundo das criaturas pelo intelecto, mas sim pelo Amor que tinha no coração. Era um artista da vida, e o artista é aquele que pinta a estrutura num quadro de paisagem, e põe na tela a sua profundidade. Francisco é o artista e sábio que deu sabor às estruturas. A veste que vestiu seu corpo não deu apenas a beleza da veste, mas a beleza do corpo, mente, alma e coração. Francisco revestiu-se da vida. Suas palavras eram em função da verdade das coisas; ele sabia usar a informação para ser um aprendiz das verdades de todas as coisas que estavam ali no cotidiano, aos pés do familiar, bem próximo. A pátria do humano é o que está mais percebido e valorizado. Ao pensar as coisas, as imagens, os símbolos, Francisco conquistou as coisas não para o uso, mas para o louvor.
A pós-modernidade vive no esquecimento das coisas mais familiares e tem medo das ruas e estradas. O medo esconde o olhar e prende os passos. Francisco nos liberta e destrava para que possamos voltar a uma devoção às coisas da terra. Ele é o gênio do gosto, do belo e do bom; ele é o padroeiro da comunidade dos que amam a Beleza e quer que toda a ação humana seja um esplendor. Quem vê a beleza em tudo o que existe está sendo sempre vendo o celestial. Quem vê o limpo e transparente, vê bem a profundidade. A civilização pós-moderna não permite mais a beleza dos pés descalços. Francisco marcava o chão com seus pés ou com uma surrada sandália; nós deixamos as marcas das grifes de nossos caríssimos tênis. O humano de hoje já não sente mais o chão, então, como dizer que aqui passou alguém? Se tivermos medo da espessura do caminho, não iremos muito longe.
Francisco de Assis pisou a terra e confraternizou-se com o solo. Olhou e cantou a vida por isso o horizonte da sua janela era mais amplo e fazia desaparecer problemas. Quem olha com profundidade apaixona-se pelo que vê; quem não olha com profundidade apenas usa; talvez este seja o olhar industrial que vai demolindo os sistemas vivos que dão suporte à vida. Nunca se falou tanto em meio ambiente, em consciência ecológica e planetária como hoje. Quantos seminários e palestras, livros e tentativas de soluções técnicas. Procura-se o remédio e a marca do remédio, mas ninguém quer entrar na causa da doença. A verdadeira causa é mais profunda, é uma questão de cosmovisão. Sobrevoamos paisagens belíssimas, mas fechamos as janelas do voo. A maioria das pessoas não enxerga o mundo. Que São Francisco de Assis nos proteja e nos ajude a não entulhar estradas e calçadas com detritos, que a mansão não jogue lixo no terreno baldio, que os esgotos não escorram nos mananciais, que o mundo não termine na cerca de nossos limites, que a Amazônia não seja conhecida pelo exótico, que os ecossistemas e biomas nos salvem, que as nossas escolas formem para existir prestando atenção na torneira que escorre, que as universidades, cada vez mais técnicas não formem profissionais de visão estreita, mais Biologia e menos fobias, que a gente ame e não brigue com a Criação ou, então, cantemos com São Francisco o seu famoso Cântico das Criaturas:
“Louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas criaturas, especialmente o senhor irmão sol,o qual é dia, e por ele nos iluminas. E ele é belo e radiante com grande esplendor, de ti, Altíssimo, traz o significado. Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã lua e pelas estrelas no céu as formaste claras e preciosas e belas. Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão vento, e pelo ar e pelas nuvens e pelo sereno e por todo tempo, pelo qual às tuas criaturas dás sustento. Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã água que é muito útil e humilde e preciosa e casta. Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão fogo pelo qual iluminas a noite e ele é belo e agradável e robusto e forte. Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã nossa, a mãe terra que  nos sustenta e governa e produz diversos frutos com coloridas flores e ervas.”
Francisco de Assis nos ensina que viver é despojar-se de qualquer sofisticação e beber mais do puro aberto do natural. Ir mais aos detalhes da vida e ver seus muitos gestos de doação e acreditar numa novidade originária. Ele é o homem que voltou ao Paraíso.  Que ele nos dê novamente esta imensa saudade do Paraíso do qual nós mesmos nos expulsamos. Ele é a Poesia da Vida e a Poesia do Humano. E o humano que anda leve no movimento sem pressa do caminho, percebendo ritmo e o verso do próprio passo. Franciscanismo e Poesia não se separam porque estiveram sempre juntos na percepção da sua identidade, mergulhados no Natural. E por falar em Poesia, vamos encerrar este ponto com o grande Drumond, poeta de Itabira, de Minas, do Rio e do Mundo:
“Francisco operário madrugador na construção de igrejas, (não de edifícios de renda, longe disso). Tantas coisas pra lhe contar, daqui de baixo! Mas você não cansou, em sete séculos e meio, de ouvir a eterna queixa, o monocórdio estribilho de nossa falta de humildade cortesia ternura nudez?
Veja por exemplo os bichos (só a eles me refiro porque não falam por si). Arvoro-me em secretário do mico-estrela, da tartaruga, da baleia, de todos, todos. Dos mais espetaculares aos mínimos, tão míseros. De irmãos você os chamava. Repare: aterrorizados. fogem de nós, com muita razão e longos medos. E um e outro, isolados, gostamos. Coisa nossa, brinquedo. É gosto sem gostar, feito de posse-domínio. Veja as infinitas coleções de animais que padecem em todos os chãos e águas da Terra e não podem dizer que padecem, e por isso padecem duas vezes, sem o suporte da santidade. Pior, Francisco: o padecimento deles é de responsabilidade nossa, humana? Desumana. Nós os torturamos e matamos por hábito de torturar e de matar e de tornar a fazê-lo, esporte, com halalis, campeonatos, medalhas, manchetes, pólvora cheirando festa, ouro pingando sangue… Repiso estas coisas meio encabulado. Tão velhas! Tão novas sempre, secamente. Técnicas letais varejam o fundo do mar E o velho tiro, a velha lâmina estão sempre caçando o irmão bicho. Lembrar que terrível penúria de amor lavra nos corações convertidos em box de supermercados de crueldades? E penúria logo de amor, essa matéria prima, essa veste inconsútil de sua vida, Francisco? Culpo-me, santinho nosso, mas antes faço-lhe um apelo: Providencie urgente sua volta ao mundo no mesmo lugar, em lugar qualquer (não, é óbvio, onde se comercia a santa esperança dos homens), para ver se dá jeito, jeito simples, franciscano, jeito descalço de consertar tudo isso. Os bichos, por este secretario, lhe agradecem.

Assim discorremos alguns aspectos da filosofia de vida desta Testemunha do século XII e tão atual, IL Poverello, um simples apaixonado pela sua identidade. Alguém que nos ensinou que mais que um lugar, o céu é Alguém e precisa estar em nosso aqui e agora. Um louco apaixonado pela sua época e por isso é uma eterna permanência, que não fez concorrência, mas realizou  convivência. Que rezou 30 e duas vezes o “Tu” em suas preces que nos deixou por escrito, mas não fez pedidos para o “eu”, porque escutou mais o Tudo e o Todos, e disse que orar assim supera qualquer atividade. Ele foi o santo da Majestade Divina e dos pobres. Fez de cada lugar, das grutas, da Porciúncula, dos bosques, do Alverne e das estradas, a casa típica de sua Ordem, a exteriorização do ideal interno de cada Irmão e Irmã que o seguiu. A sua vida é simples; não é complicada, é límpida e livre; tem a originalidade própria do Amor que ele sempre buscou.
Foi um sonhador e por isso mesmo um grande realizador. Por acreditar em seus sonhos foi à frente e continua a puxar para frente a história da humanidade. Inspirou o nome do novo Papa, para ser mais uma vez, aquele que coloca ruínas em pé, com o paciente e artesanal trabalho de reconstruir. Não é um santo do passado, é do futuro, do amanhã e do hoje das nossas mais belas esperanças. Com ele, aprendemos a acordar de manhã e não desfazermos dos sonhos. Ele convoca a um novo jeito de viver a Boa Nova que é exatamente a fazer nova a humanidade. Nisto está a sua profecia, cortesia e delicadeza espiritual. Ele é uma ação humana ética! Um complexo de amor ao Pai. Não brigou com o errado, mas viveu o certo.
Aprendeu com o Senhor que nós mesmos temos que ser o Bem, o Bem Absoluto, o Sumo Bem, mergulhar no Bem. Ele é um fervor da Vida, uma Comunhão Universal, uma Fraternidade. Simples e essencial. Menor, vazio de apegos, completamente despojado, sem negatividades, sem pessimismos, sem dramaticidade. Nasce a cada instante. Concretizou, de um ou outro modo, o seu projeto inicial: ser um Cavaleiro Medieval,  ou melhor, adequou um código de comportamento para um novo ideal humano caracterizado pela nobreza de alma, honradez, coragem, fidelidade, jovialidade, prodigalidade e uma forte espiritualidade. Que São Francisco de Assis resgate em nós o melhor de nós! Paz e Bem!

NOTA
Todas as citações das Fontes Franciscanas e Clarianas que estão nas notas deste artigo com a consequente explicação das Siglas Abreviadas estão em: Fontes Franciscanas e Clarianas, Vozes- FFB, Petrópolis, 2004.
Fonte: http://carismafranciscano.blogspot.com.br/2013